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IMPACTOS CULTURAIS NA MEMÓRIA DE MIGRANTES ASSENTADOS NA TRANSAMAZÔNICA

Paulo Roberto Ferreira Desde o período colonial até a República, a política de ocupação do território amazônico foi baseada no deslocamento de populações de outros continentes e até mesmo de outras regiões brasileiras. Além de dominar o espaço, o processo migratório governamental, orientado para a área rural, sempre visou, também, a exportação de produtos da floresta, a produção e abastecimento interno de alimentos e criação de um mercado consumidor de bens manufaturados fora da região. As vias de penetração no território amazônico eram os rios. A busca pelas chamadas “drogas do sertão” e, posteriormente, a extração do látex da seringueira alargaram o conhecimento e o domínio sobre a região. Segundo Santos (1980) “em 1730, graças ao trabalho de missionários e dos colonos, a exportação do cacau alcançou 28.216 arroubas; em 1740, 58.910. Por essa altura o produto representava, em valor, mais de 90% das exportações regionais” (SANTOS, 1980, p. 17). Ao perceber o potencial econômico do cacau nativo, também chamado de “bravo”, o governo colonial criou a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, que funcionou entre 1755 a 1778. O ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Sebastião José de Carvalho e Mello, o Marquês de Pombal, apostou na consolidação de um produto de grande aceitação no mercado europeu e seu escoamento pela rota marítima entre Belém e Lisboa. Durante os 23 anos de existência da Companhia, o cacau foi o principal produto exportável, o eixo da economia regional. A força de trabalho utilizada na coleta, secagem, armazenagem e embarque da amêndoa de cacau foi a escrava. Primeiro a indígena, depois a africana. A Revolução Industrial vivida pela Europa gerou um outro meio de locomoção para acelerar o escoamento, em larga escala, de diversas mercadorias produzidas nos grandes centros comerciais e destinadas à exportação. George Stephenson (1781-1848) inventou a locomotiva e a primeira estrada de ferro. A novidade chegou ao continente americano. E em 1835 o governo imperial brasileiro publicava lei concedendo autorização a grupos privados para construção e exploração de ferrovias. O novo meio de transporte de cargas e passageiros foi introduzido na Amazônia. A Estrada de Ferro de Bragança (EFB), com uma extensão de 222 quilômetros, fez a ligação entre Belém e o município de Bragança, na região Nordeste do Pará. A construção começou em 1883, ainda no período imperial, e foi concluída em 1908, já na fase do regime republicano. No outro extremo na região, em Rondônia, foi construída a Estrada de Ferro Madeira Mamoré (EFMM), de Guajará-Mirim, na divisa com a Bolívia, até Porto Velho, no Rio Madeira. A construção da ferrovia, com 366 quilômetros de extensão começou em 1907, e a conclusão em 1912. A EFB destinava-se a escoar a produção agrícola para abastecer Belém e aos barcos regatões, que levavam mercadorias aos seringais nativos espalhados pela floresta. A EFMM surgiu para escoar a produção de borracha do Brasil e da Bolívia até ao rio Madeira, para dali tomar o rumo do Atlântico. Portanto, ambas as ferrovias foram ligadas, e financiadas, pela chamada “economia da borracha”. A partir da década de 1950, o governo federal optou por um novo modal de transporte. Priorizou as estradas de rodagens como meio de acelerar ainda mais a circulação de mercadorias produzidas no Sudeste, para comercialização na Amazônia. As rodovias serviram também de via de escoamento da produção regional para as demais regiões do País. De acordo com Martins, “o Brasil é um dos poucos países do mundo em que a expansão capitalista ainda está associada à expansão territorial [...]. As rodovias fizeram das regiões interiores, antes tributárias dos grandes rios, colônias de exploração e colônias demográficas do Sudeste industrializado” (MARTINS, 1986, p. 84). Força de trabalho na Amazônia No período do governo imperial brasileiro, final do século XIX, foi estimulado o trabalho livre, com a migração de europeus, especialmente para ocupação de parte do território do Sul do País, e também do Sudeste. Mas, somente a partir de 7 de setembro de 1867, quando a Lei Imperial 3.749/66 entrou em vigor, com a abertura oficial da navegação internacional do Rio Amazonas, estavam criadas as condições para a entrada de migrantes da Europa na Amazônia. Entretanto, logo após a Proclamação da República, o decreto federal nº 163, de 1890, ordenou um novo modelo de colonização. De acordo com Emmi (2008) o ato federal impôs que “para a Amazônia deveriam ser encaminhados somente colonos nacionais, uma vez que, segundo as condições climáticas, a região seria inadequada para receber imigrantes europeus” (EMMI, 2008, p. 126). Porém, a autonomia administrativa e financeira, atribuída pela Constituição do novo regime político aos estados da federação, permitiu ao Pará, beneficiado pelo apogeu da economia da borracha, definir, com a lei estadual 223, de 1894, do governo Lauro Sodré, a autorização para a introdução de imigrantes estrangeiros que desejassem se estabelecer no Pará como comerciantes ou agricultores. A chegada dos primeiros imigrantes a Belém, após o advento da Lei 223, ocorreu no ano 1896 e o governo estadual decidiu ocupar uma faixa do território com objetivo de produzir alimentos ao longo da Estrada de Ferro de Bragança (EFB). A economia da borracha, que financiou a nova via de escoamento da produção, demandava cada vez mais alimentos para abastecer os seringais nativos, que movimentavam a expansão das frentes de penetração em busca do látex. O governo Lauro Sodré concedia passagens gratuitas nos navios que transportavam os imigrantes. Italianos, portugueses, alemães, espanhóis, libaneses e trabalhadores de outras nacionalidades, começaram a chegar a Belém. A maior parte dos italianos, portugueses e alemães ficava nas áreas urbanas, enquanto um expressivo número de imigrantes espanhóis era deslocado para a área rural. Segundo adaptação feita por Emmi (2008), em dados levantados por Maria Stella Ferreira Levy, o Pará contava, em 1872, com 6.529 estrangeiros registrados. Esse contingente caiu para 2.201 em 1.900, portanto, já no período republicano, e deu um salto, em 1.920, quando a população de imigrantes estrangeiros alcançou a marca de 22.083 pessoas. O contingente de espanhóis assentados nas colônias situadas entre Belém e Bragança, segundo Mensagem do governador Augusto Montenegro ao Congresso Legislativo do Pará , alcançou o número de 12.029. Mas no ano de 1902, quando foi feito um recenseamento, restavam apenas 1.802 pessoas originárias da Espanha. Vários fatores contribuíram para a evasão dos colonos, que se deslocaram para os centros urbanos da Amazônia e outras cidades do País. As causas do fracasso do projeto de colonização com mão de obra europeia são diversas. Entre elas, os impactos ambientais e culturais que os imigrantes espanhóis enfrentaram na Amazônia paraense. Fatores como o clima quente e úmido, as doenças endêmicas e a ausência de alimentos que integravam o cardápio dos povos europeus não apareciam na propaganda que atraiu os imigrantes. Segundo os pesquisadores Maria de Fátima Carneiro da Conceição, Aline Reis de Oliveira e Jamerson Rodrigues Monteiro Viana, no artigo “Políticas agrárias e estrutura fundiária na Zona Bragantina: Nordeste Paraense”, foram “muitos os problemas enfrentados pelos imigrantes europeus”, destacando-se “a falta de adaptação às condições climáticas da Amazônia, o isolamento inicial dos núcleos e as doenças como a febre amarela, a malária e a varíola” (CONEIÇÃO, OLIVEIRA, VIANA, 2002, p. 233). Deixar a terra em que nasceu, em busca de outras regiões, em países e continentes bem diferentes é sempre uma decisão difícil e impactante na vida das pessoas. Para Rosa Pérez Perdomo, no artigo “Os efeitos da migração”, a “mobilização das populações costuma ter uma ampla variedade de repercussões nas pessoas que emigram, bem como nas populações onde estas se estabelecem. Estes efeitos podem ser tanto no âmbito sociocultural como na saúde pública. A emigração pode ser voluntária e planejada ou forçada, mas em ambos os casos é um evento estressante na vida de quem a vivencia” (PERDOMO, 2006, p. 111). Teve destacado papel na atração dos emigrantes, a propaganda que as empresas credenciadas pelo poder público faziam na Europa. Foi até editado um guia do imigrante que, segundo Smith Júnior (2012), o documento “descrevia a Amazônia como uma terra de muitas qualidades naturais; mostrava um lugar de beleza exuberante e de solo fértil” (SMITH JÚNIOR, 2012, p. 72). O título do guia para os emigrantes espanhóis era: Amazônia – informacion a los españoles que desean emigrar al Estado del Pará. Os migrantes espanhóis foram assentados nas colônias agrícolas de Monte Alegre, na região do Baixo Amazonas, e ao longo da Estrada de Ferro de Bragança (EFB), na região nordeste do Pará. Às proximidades, e ao longo do trajeto da EFB, surgiram as colônias Benevides, Americano, Ferreira Penna, Santa Rosa, Araripe, José de Alencar, Apeú, Ianetama, Marapanim, Jambu-Açu e Benjamin Constant. Os imigrantes espanhóis ganharam passagens de navio e receberam lotes de terra com 25 hectares. Mas nem tudo o que prometeu, o governo cumpriu, conforme Ferreira & Costa (2011): O projeto de se estabelecer no Pará por vezes era interrompido diante da descoberta desanimadora dos locais onde iriam trabalhar. Muito embora o governo devesse por lei fornecer terras já preparadas para receber os imigrantes, a realidade com a qual se deparavam mostrava áreas isoladas, completamente cobertas por uma densa floresta, própria do domínio amazônico e pouco fértil, que ainda precisaria ser derrubada para a construção dos locais de habitação e início do cultivo dos gêneros agrícolas [...]. Logo, não é de se estranhar que alguns se recusassem a permanecer nessas terras, preferindo retornar a Belém ou reemigrar para outros estados do Brasil – especialmente para São Paulo – e mesmo para a Argentina ou para o Uruguai (FERREIRA, COSTA, 2011, p. 9-10). Além da mão de obra estrangeira, a ocupação da Amazônia contou com um forte fluxo migratório do nordeste brasileiro, tendo como fator detonador a grande seca do último quartel do século XIX, quando as estimativas apontam que cerca de 120 mil nordestinos se deslocaram para a região. Segundo Neto (1986), “a partir de 1877, quando a seca dos sertões cearenses forçou a saída de milhares de nordestinos, em busca de melhoria de vida, o processo migratório assumiu grandes proporções. Isso veio a propiciar a mão-de-obra necessária à extração da borracha” (MIRANDA NETO, 1986, p. 37). Ianni (1984) afirma que o Nordeste representa um grande fornecedor de força de trabalho para as diversas regiões brasileiras. O pesquisador assegura que desde meados do século XIX, o primeiro ciclo da borracha já havia provocado intensa migração de nordestinos para a Amazônia. (...) Depois, durante a Segunda Guerra Mundial, novamente o governo tangeu nordestinos para a coleta da borracha. (...) Em seguida, em 1970, a Ditadura Militar inventou o Plano de Integração Nacional, que implicou, entre outros interesses econômicos e políticos dos governantes, a transferência de flagelados das secas para a construção da Transamazônica e o povoamento de suas margens (IANNI, 1984, p. 249). Impactos culturais Mesmo vivendo no mesmo País e falando a mesma língua, as diferenças de hábitos, costumes, palavras, espaço geográfico, clima e até fenômenos naturais impactaram os migrantes das Regiões Sul e Nordeste brasileiras, assentados no Pará, às margens da rodovia Transamazônica (BR-230), por meio da colonização dirigida, no período da ditadura militar de 1964. As memórias dos trabalhadores rurais, quase 50 anos após os primeiros assentamentos, servem para demonstrar que a ação autoritária de remanejamento populacional não considerava os choques e os efeitos emocionais que a mudança de território provocaria nas pessoas. Por meio dos relatos orais é possível compreender o quanto as famílias de colonos recebiam poucas informações sobre a região para onde estavam sendo transferidas. Um exemplo é da família de VG , 66 anos, natural de Iraí (RS): O primeiro impacto foi quando a gente chegou de Porto Alegre em Belém. Quando o avião abriu as portas, parecia que a gente tinha entrado numa fogueira e o fogo tivesse entrado no avião. A temperatura do avião talvez tivesse regulado para 18, 20 graus, quando abriu a porta, foi para 40, 45 graus. Era o calor do asfalto, ao meio dia, o horário que a gente desembarcou . Junto com os pais e mais nove irmãos, VG, então com 17 anos de idade, foi levado para um barracão do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), no ramal do Tacajós, município de Santa Izabel do Pará, a 30 quilômetros de Belém. Junto com outras famílias, esperaram oito dias para serem levados, num avião da Força Aérea Brasileira (FAB), a Itaituba. Enquanto aguardava a viagem, o chefe da família foi pescar num igarapé que deságua no rio Guamá. O pai pegou um azol e saiu andando. Uma hora depois, voltou apavorado, contando uma história que ele foi pra beira do rio, jogou o anzol e o rio começou a secar e em menos de meia hora o rio já estava vazio. Ele voltou desesperado e disse: “está acabando o mundo, eu estava lá pescando e a água começou a ir embora”. Aí foi uma tropa com ele para ver aquele acontecimento. Era a mãe rezando um terço. Depois de muito tempo que a gente foi saber que era efeito da maré, que tem um tempo que a água sobe e depois seca, de seis em seis horas, mas ninguém sabia disso. Então foi um fato que a gente nunca mais esqueceu . AG , irmão oito anos mais velho que VG, também lembra deste fato que aconteceu em outubro de 1972, quando fazia muito calor no Pará, enquanto era época de primavera no Rio Grande do Sul. Aquilo foi assustador. Tu chegas ali, o igarapé completamente seco, sujo. Aí daqui a pouco começa encher. A gente se perguntava: de onde vem essa água? Não tinha chovido. Daqui a pouco a água tomava conta de tudo, saia fora do leito do rio. (...) Não conhecíamos o fenômeno de maré. Aí fomos perguntar pra turma local e eles explicavam um pouco. Mas foi duro compreender. Era um perigo pra quem não soubesse nadar, se ficasse dentro do igarapé, quando começava encher era tudo muito rápido. Quando esvaziava, secava tudo. Aquilo tirava a gente do sério. A gente levava horas conversando sobre aquilo . O desconhecimento do clima quente e úmido e o fenômeno das marés assustaram os imigrantes de Iraí, antes mesmo da chegada à região onde iriam ser instalados pelo Projeto Integrado de Colonização (PIC Itaituba). Um mês antes, em setembro de 1972, já havia chegado à família de JB, procedente de Cruzeiro do Oeste (PR). A filha do chefe da família, NMB , 67 anos, recorda que quando foram deixados em frente ao lote de 100 hectares, a primeira surpresa foi a ausência da casa onde deveriam se abrigar. Ao entrar numa picada que dava acesso ao rio, o pai de NMB viu a casa de palha de um caçador e decidiu fazer uma igual. O problema é que a gente nunca tinha usado folha de babaçu. Lá no Sul a gente usava telha de cerâmica. A gente colocou a palha aberta e quando veio a primeira chuva a água foi pra dentro do nosso barraco. Estragou tudo quanto era coisa que a gente tinha lá . Quando o caçador passou pelo lote da família de NMB, ensinou que era preciso dobrar e unir muitas folhas de babaçu para proteger a casa da chuva. O mesmo se repetiu com outras famílias de migrantes do Sul e do Sudeste do Brasil. ICW , 59 anos, chegou à Transamazônica em 1974, com 12 anos, procedente da Vila Chapadão, município de Linhares, no Espírito Santo. As dificuldades que sua família enfrentou foram imensas. Quando nós vimos só mata, macaco pulando em cima do barraco, a gente morria de medo. A nossa família de 11 irmãos debaixo de um barraquinho tão pequenininho, que o papai teve que colocar umas tábuas e fazer um sótão para abrigar todo mundo, O papai determinou que os meninos ficavam em cima e as meninas embaixo. Quando choveu, os meninos foram os primeiros que se molharam, a casa era de palha, mal coberta, a gente nem sabia fazer os barracos, a gente fazia tudo errado . A decepção com a propaganda que o governo fazia para aliciar os migrantes ainda em seus Estados de origem se manifesta na fala de AG, quando sua família não recebeu nem casa e nem a área para os primeiros plantios: O grande choque da gente é que a propaganda feita pelo Incra era que nós íamos chegar e receber 100 hectare de terra (o governo preparava três hectares), uma casinha e o início de pasto para botar uma vaquinha, um chiqueiro de porco. Mas quando chegamos, a ferida era a estrada no meio da mata. A única coisa que tinha era um marco de 500 em 500 metros. Ficamos na beira da estrada. Era tudo mentira aquela propaganda. Aí começou a batalha . Além de não receber a casa pronta, os colonos não obtiveram qualquer tipo de orientação sobre como construir uma cabana, usando os materiais da própria floresta. Foram os moradores nativos, geralmente caçadores, que os ensinaram a escolher a melhor madeira, as folhas de palmeiras e o modo de cobrir a habitação. NMB estranhou muito a falta de um tipo de grão que era muito utilizado no Sul do País: A gente era acostumada a comprar o trigo e não achava pra comprar. O pessoal de Itaituba não conhecia. Lá no Sul a gente comprava dos vizinhos, mandava no moinho e depois levava a farinha para casa, em grande quantidade. E aqui não tinha isso. A gente fazia muita coisa com o trigo para a nossa alimentação: o macarrão, o pão e sem isso era difícil . Outra mudança de hábito que demorou a ser assimilada pelos migrantes do Sul e Sudeste foi o uso de rede de dormir. O utensílio doméstico, e de origem ameríndia, fartamente utilizado no Norte e Nordeste, era distribuído pelos funcionários do Incra sem nenhum tipo de explicação sobre como deveria ser utilizado, relata AG: “As redes eram usadas, estavam molhadas e os punhos danificados. Ninguém sabia como usar. O jeito foi a gente colocar a rede no chão e deitar em cima” . JFA, 68 anos, maranhense do povoado de São Miguel, município de Presidente Dutra, chegou à Transamazônica, em 1974. Ele testemunhou o drama dos seus vizinhos gaúchos e paranaenses, que não sabiam lidar com a rede de dormir: “Eles receberam rede, mas não conheciam aquela porcaria. Então esticavam de um lado para o outro e quando deitavam ela derramava eles para o lado. Levantavam e caiam para o outro lado” . A falta de escola foi um choque para ICW, que aos dez anos cursava a quarta série do primário em Linhares (ES). Mas foi obrigada a ficar sem estudar quando chegou à Transamazônica: “Aí a gente chorava com vontade de voltar. Nossa, foi bastante pesado” . A saudade de um campo de futebol naquela região de floresta era o que amofinava o jovem gaúcho VG, assentado num lote que hoje faz parte do município de Placas. Eu gostava muito de futebol mas, como não tinha campo, passava pela minha cabeça voltar para Iraí, lá para o Sul. Depois eu comecei a ir para Itaituba (160 quilômetros de distância), em cima de um caminhão do Incra. Ia num sábado para jogar no domingo de manhã. Lá no Sul, nós tínhamos os times na comunidade, o time dos adultos, dos jovens, das crianças. Eu senti muito. Foi muito difícil, a gente queria ir numa festinha, não tinha, queria jogar bola, não tinha . As doenças tropicais, contraídas pelas famílias dos migrantes, também foram fatores que perturbaram e provocaram o desejo de retorno aos seus locais de origem. Foi o caso de uma família capixaba e de outra maranhense: “Meus irmãos pegaram malária. Eu tenho marcas de leishmaniose até hoje. Isso dava muita vontade da gente voltar para nossa terra” . “Peguei a leishmaniose e fiquei revoltado com o Pará. Eu desisti e voltei para o Maranhão. Depois fui pra Brasília e retornei para a Transamazônica dois anos depois” . AG contraiu hepatite depois que chegou à Transamazônica, e lembra que seu pai comparou a situação em que estavam vivendo, ao inferno. Chegou a reunir a família e comunicou que estava disposto a retornar ao Rio Grande do Sul: Nós já estávamos vivendo uns três meses na Transamazônica, fazendo a roça, brocando e derrubando, quando a vizinhança toda pegou malária. Na família Camargo, morreu a mãe e uma menina de 18 anos. Aí começou uma certa crise do chefe nosso, que era o meu pai. Chegou um dia que ele nos chamou e disse: eu conversei muito com a mãe de vocês, a situação está muito difícil e nós vamos embora. Vamos deixar isso aqui, e vamos embora, não tem mais jeito. Acho que em vez da gente vir para uma colonização, nós viemos foi pro inferno. Porque se nós ainda não estamos no inferno, vamos procurar porque o inferno não pode estar mais longe que uns três quilômetros daqui. É muito sofrimento . A esposa de AG recorda que seu pai, JB, também pensou em voltar ao Paraná, por conta das doenças, parasitas e da distância do centro urbano mais próximo, a cidade de Itaituba, que ficava a 160 quilômetros de onde eles foram assentados: Eu ajudava o meu pai na derrubada da mata, logo que chegamos na Transamazônica. E o meu corpo não tinha mais lugar onde não tinha carrapato. Eu peguei uma faca e raspei, mas ficou o ferrão. Aí tinha um repelente que a gente usava para evitar mosquito, eu passei, depois de raspar os carrapatos e voltei para a roça no mesmo dia. Aí me deu uma fraqueza tão grande que eu não tinha mais vontade de fazer nada. Fiquei com falta de ar e passei bem 15 dias assim. E para ir ao médico, tinha que viajar 160 quilômetros, até à cidade de Itaituba . A falta de energia elétrica, para quem já conhecia as vantagens e comodidades desse tipo de serviço, também provocou uma grande decepção em alguns ocupantes das margens da BR-230, como foi o caso da família de NMB: “Passamos muito tempo sem energia elétrica. Lá no Sul, a gente nem pagava a energia, pois o meu pai trabalhava numa usina. E aqui tinha que usar óleo diesel para colocar nas lamparinas” . Pior que as dificuldades reais enfrentadas pelos pioneiros da Transamazônica foi vencer os preconceitos sobre a população local. Como nos lembra Loureiro, os primeiros colonizadores europeus a pisar na Amazônia, no final dos séculos XV, e início do século XVI, inauguraram os estereótipos sobre os habitantes da região. “Pinzon e Orellana não se conformaram em ver aquela terra, que lhes parecia ser o paraíso terrestre, ocupada por povos que julgavam bárbaros, primitivos, rudes, preguiçosos, e o pior – possivelmente desprovidos de alma ou, pelo menos, de uma alma europeia” (LOUREIRO, 2001, p. 250). Ainda no Rio Grande do Sul, os agricultores de Iraí foram informados pelos funcionários do Incra, que moradores da Amazônia eram preguiçosos, como nos conta AG: Diziam que não era pra gente se apavorar porque na região tinha um povo que não gostava muito de trabalhar, e que nós poderíamos ser a grande referência para o governo, ganhar dinheiro e crescer. A população que a gente ia encontrar não queria trabalhar. Qualquer coisa que eles têm já é o suficiente. Eles já estão conformados e vocês vão pra lá pra serem os agentes que vão enfrentar a floresta, plantar grãos, hortifrutigranjeiros, e também trabalhar com a pecuária de corte e leiteira . JFA lembra que os nordestinos e goianos eram assentados em lotes separados dos migrantes do Sul do Brasil: Tinha também o preconceito com os nordestinos, principalmente com os sulistas que nos chamavam de “negrada”. Por isso, a gente não costumava visitar os vizinhos gaúchos, capixabas etc. Era uma relação muito difícil. O pessoal da minha cor ou mais moreno não jogava no time de futebol dos gaúchos. Não era permitido. A gente ficava só olhando. Eles jogavam contra a gente. Mas se achavam muito superiores e não queriam perder pra gente. Quando perdiam, era uma confusão danada . NMB também recorda da separação dos colonos, assentados em lotes diferentes, de acordo com a origem: “O Incra assentou as famílias separadas. Do Sul num lugar, do Nordeste em outro lugar. Era muito difícil encontrar o pessoal do próprio Norte. A gente só encontrava com gente do Norte quando ia em Itaituba” . A diferença de sotaques e o desconhecimento das palavras e expressões usadas pelo pessoal do Sul, Sudeste, Norte e Nordeste aumentava a dificuldade de integração dos colonos. Quem nos dá um exemplo é VG: Quando a gente viajava de caminhão, às vezes iam até 150 pessoas embarcando e descendo ao longo da rodovia. Uma vez, um caminhão ia sair de Miritituba (Itaituba), aí o cara falou para o motorista: aguarda aí que eu vou buscar minha cachorra, rapidinho. Aí eu pensei comigo, eu não acredito que já tem 150 pessoas em cima de um caminhão e o cara ainda vai buscar uma cachorra pra botar aqui dentro. Não vai dar certo. Aí ele chega com uma sacolinha velha e joga em cima do caminhão. Eu perguntei: cadê a tua cachorra? E ele respondeu: acabei de jogar aí em cima. Então eu descobri que a “cachorra” era uma sacola com os bagulhos dele dentro. Outros chamavam a sacola de “boroca”, principalmente os garimpeiros . A paranaense NMB recorda que não compreendia o jeito de falar da população local: “A gente tinha dificuldade de entender o paraense. Tinha que pedir para ele repetir mais uma vez o que estava falando” . Já o maranhense JFA achava estranho o sotaque gaúcho carregado nas letras dobradas: Os gaúchos carregavam na letra erre. Eles falavam rápido e ninguém entendia nada. A forma de falar dos gauchinhos era muito engraçada. Uma vez, um gaúcho chegou num comércio e pediu “uma bolsa de farinha”. Aí o paraense deu um quilo de farinha de mandioca. O gaúcho reagiu e repetiu o que desejava, olhou para o pacote que o comerciante entregou para ele e declarou: “Gaúcho não come piçarra, tchê! Eu quero uma bolsa de farinha, desgraça! Se tu não quer vender, me diz!”. O que ele estava querendo era um saco de trigo . O costume local no manuseio de determinados alimentos causava também muito estranhamento aos imigrantes, acostumados a outros métodos e procedimentos, como relatava VG: A gente queria comprar uma carne de boi fresquinha e não tinha. Os caras matavam o boi num dia, mas só vendiam a carne no dia seguinte. Deixavam o boi pendurado para escorrer o sangue. A nossa tradição é: matou o boi, corta, põe no espeto, mete sal, assa e já vai comendo. Mas aqui era outra forma e a gente estranhava . Para quem estava acostumada a moer o grão de café que bebia em casa, surpreendia-se quando não encontrava o que era tão comum em sua terra de origem, como foi o caso da família de NMB: A gente sentia falta do café. Em Itaituba só tinha Nescafé. Peguei um nojo daquele Nescafé porque não tinha quase o café em pó, e sim o Nescau. Nós estávamos acostumados com o café plantado, em grãos e moído. Quem vinha da cultura do café artesanal para a cultura industrializada foi um impacto . Surpreso ficou o maranhense JFA quando experimentou as comidas e bebidas dos vizinhos que vieram do Sul, Sudeste e Centro Oeste: A primeira vez que eu tomei um chimarrão foi em 1979, cinco anos depois que eu cheguei na Transamazônica. Eu puxei a cuia pra boca, igual como se faz com a xícara de café, fui entortando um pouco e aí derramou em mim. Queimei a língua e a barriga. A polenta foi outra coisa inédita. Eu nunca tinha visto aquilo. Na hora do almoço, veio aquele negócio de milho, colocado no prato, recentemente tirado da panela. Eu peguei com a colher e, pá na boca, e pá no chão! Queimou minha língua logo de primeira . Quando viu, pela primeira vez, um tipo de comida típica do Pará, a cunhada de ICW fez um relato impressionante: Eu tinha uma cunhada que quando foi a primeira vez em Santarém voltou assustada como o que viu e relatou assim: “cunhadinha, eu não sei o que o povo estava comendo lá. Era uma cuia preta, com caldo amarelo e um monte de baratinha dentro. Eu juro, vou pro inferno se eu estiver mentido, era baratinha”. Era o tacacá, a baratinha era o camarão . Antes do deslocamento para a Amazônia, os colonos do Sul e Sudeste eram aconselhados a ter muito cuidado com os animais da floresta. E, por isso, muitos chegavam apreensivos à região. Com uma mistura de medo, surpresa e encanto pela beleza da mata e de alguns animais, o piauiense AAA, 73 anos, oriundo de João de Paiva (PI), penetrou, em 1971, numa picada onde seria construído o Travessão 17, município de Brasil Novo: “Quando eu entrei na floresta, fiquei com medo. Nunca tinha visto uma castanheira, um jatobá, pequi, toari, árvores grandes, mata fechada. Vi também muita caça correndo com medo de mim. Tinha cutia, jacu, mutum, jacamim, jaboti, macaco, arara” . AG recorda como foi que aprendeu a conviver e a entender as reações dos animais da floresta: O que nos assustava e causava medo era a história da onça, que poderia nos atacar. E depois a gente tomou consciência que a onça nunca ataca a gente dentro da mata. Só se ela estiver com uma cria nova e você passar ao lado. Ela se sente ameaçada e vai fazer a defesa da cria. Ou quando ela pegou uma caça, está comendo e você mexe com ela. A onça não ataca o ser humano. Só em caso de autodefesa. Ninguém da nossa comunidade foi atacado. Agora, tinha muita gente fazendo maldade com esse animal. A pele da onça valia ouro naquele período. Então, tinham os caçadores profissionais que matavam para tirar a pele do animal. A gente entrava na floresta e estava cheio de alçapão para captura onça . Andar na mata exigia silêncio para não afugentar a caça. Mas nem todos conheciam essa regra do nativo da região, como nos conta JFA: A gente tinha medo da mata. E não sabia caçar, nem pescar. Logo no início a gente saía para caçar. O meu pai com uma espingarda e eu com um terçado. A gente ia conversando e não encontrava nem jaboti. Como a gente podia encontrar os animais se a gente ia conversando? Fazendo barulho? E a gente só sabia andar na picada que tinha entre os lotes divididos pelo Incra. A gente tinha medo de se perder, e não se afastava da picada . Por falta de alternativa de lazer, VG começou a entrar na mata e aprendeu os sinais de como se localizar com um caçador da região e um vizinho gaúcho: Conversando com um e com outro, fui pegando a manha de andar na mata, me guiando pelo Sol e me localizando tendo como referência a estrada. Quem me ensinou foi um velho caçador que andava na região e o JB. Meu pai ficou assustado porque eu andava na mata, abrindo picada e ele tinha muito medo de cobra e onça. Então 40 dias depois que a gente estava morando na Transamazônica eu matei uma caça. Imagina só chegar com um porco queixada em casa, o primeiro da comunidade que tinha conseguido uma caça? Então eu fui criando coragem, fui entrando mais na mata. Fui eu quem descobriu o rio. O rio era perto de casa, no terreno da comunidade. Quando a gente descobriu o rio, foi uma festa . A necessidade de dividir as experiências para enfrentar as dificuldades levou os colonos a se aproximarem e quebrar os preconceitos. Os jogos de futebol e as festas dançantes ajudaram a reduzir resistências. AG recorda que seu vizinho e futuro sogro conseguiu transportar, numa kombi, junto com parte de sua mudança, ainda em 1972, uma radiola a pilha e discos de vinil: A gente botava pra tocar e dançava, no sábado de tarde e de noite. Ali, na frente da casa, a poeira levantava. Depois que veio a construção do galpão da comunidade. Aí juntava gente de muito longe para ouvir e dançar ao som da radiola. Quando terminava a pilha, tinha que ir buscar em Itaituba, 180 quilômetros de onde a gente estava. Com a chegada do padre franciscano, o frei Pedro, ele tinha um gerador à gasolina para usar na celebração, à noite. Depois ele emprestava pra gente. Só depois de muito tempo é que a gente comprou um gerador pra comunidade . VG percebeu que quando a comunidade já tinha uma melhor estrutura para festas, reuniões e atos religiosos, os eventos ainda eram bastante segregados. E que levou um tempo para que os jovens fossem perdendo o medo, compreendendo a cultura do outro e rompendo as barreiras regionais: Depois de algum tempo, a gente montou uma boa estrutura na nossa comunidade onde a gente fazia festa dançante. Quando vinham as bandas de música de Santarém, a turma da comunidade não dançava. A gente ficava puto porque tocavam uma música que a gente achava que dançando daquele jeito eles eram um bando de loucos. A maioria dançando sozinho enquanto a gente só sabia dançar de casal. Outra coisa é que quando tocava forró, só dançava nordestino. E quando tocava uma vanera ou vanerão, só dançava gaúcho. O resto saia todo mundo da pista de dança. Ficava estranho aquilo. Demorou uns cinco seis anos até que o gaúcho foi aprendendo a dançar forró, o nordestino foi aprendendo a dançar o nosso shot. Depois de alguns anos a gente foi percebendo e começou a trabalhar contra essas diferenças. A mudança aconteceu quando o gaúcho começou a namorar com a nordestina, muita gente foi casando, tanto que, hoje, a cultura na região é outra . Outra necessidade de integração na Transamazônica surgiu quando os colonos tiveram que enfrentar o Incra e os órgãos de assistência técnica, que orientavam o plantio de determinadas culturas. mas não conheciam as condições do solo em toda a extensão das terras que ficavam às margens da rodovia, entre Altamira e Itaituba. Nem tudo que produzia bem em Medicilândia e Brasil Novo tinha o mesmo resultado em Placas e Rurópolis. O plantio de milho, por exemplo, causava irritação e prejuízo aos colonos, como relata AG: “Nós quebramos muito a cara plantando milho. De Altamira e Brasil Novo, a Medicilândia, ali dá milho. Mas lá em Placas não dava. A assistência técnica ou era inadequada ou não existia” . Mesmo o arroz que produzia bem na área, também teve problemas e causou prejuízos aos agricultores, conforme recorda VG: Durante seis, sete anos, o nosso ganha-pão foi o arroz. A gente produzia e o próprio Incra tinha um sistema de compra, através da Cibrazem. E em 1973 (nós chegamos em 1972) o Incra forneceu uma semente de arroz que filhou. A gente plantava um grão e ele chegava a dá 70, 80 cachos. A gente ficou alegre e o meu pai dizia: “vai ser a maior safra”. Só que essa semente tinha um defeito genético, e eu acho que já era transgênico. Quando nasceu, não deu grão, foi zero de safra, foi um ano inteiro perdido. Foi o período mais difícil pra nós . Retirar a produção dos lotes que ficavam nas travessas que cortam a rodovia era outra dor de cabeça para os trabalhadores rurais. Quem nos fala sobre isso é o JFA: “A gente perdia produtos nas vicinais porque os caminhões não entravam nos travessões. Então, isso forçou a buscar a solução de forma coletiva” . Na medida em que aumentavam os conflitos, os colonos sentiam necessidade de se juntar e se organizar. Para isso foi importante a ação da Igreja Católica, da Teologia da Libertação, e do trabalho de formação do movimento Corrente Sindical Lavradores Unidos. AAA recorda que em Brasil Novo foi fundamental o trabalho dos padres Oscar e Alírio: “Foi ali que a gente aprendeu a comer juntos, onde cada um levava alguma coisa para fazer a comida” . JFA complementa falando de sua experiência na organização dos colonos: O movimento sindical foi um negócio fantástico. Foi como o Iluminismo para tirar a venda dos olhos e nos permitiu entender o processo de dominação do homem sobre o homem. Fui associado em abril de 1979 e em outubro daquele ano passei a ser delegado sindical . A solução dos problemas coletivos começou a ser enfrentada com a implantação de espaços de revenda de mercadorias, aquisição de caminhões comunitários e outras ações que reduziam a dependência de outros agentes econômicos e que foram relevantes para que os agricultores continuassem na terra, como avalia VG: O que juntava todo mundo era jogar bola, a parte religiosa, os caminhões comunitários e as revendas. A gente sabia que todo comerciante individual ficava com o pouco de dinheiro que circulava na comunidade. E, geralmente, fazia parte da estrutura dominante, não votava com a gente, era sempre ligado ao poder local. Então a gente pensou: vamos organizar o revendão? vamos disputar e quebrar essa estrutura? Por que o dinheiro tem que ficar com uma pessoa? Por que o dinheiro não pode ficar pra mais gente? A ideia era, além de ter produtos pra vender, ter uma empresa cooperativada. E essa ideia permanece viva até hoje. É a chamada economia solidária. AG fala da formação das caixinhas comunitárias a partir da experiência de introdução da cultura da pimenta-do-reino na região que hoje pertence ao município de Placas: Eu já tinha entrado na Igreja e estava ajudando a construir as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), me tornado amigo do bispo de Santarém, Dom Tiago Ryan. O Banco do Brasil ofereceu crédito para mim e meu irmão Pedro. Financiaria um caminhão, um trator, carreta quatro rodas, pulverizador etc. Mas não incluía a comunidade. E na formação que nós tínhamos recebido a gente queria que incluísse a comunidade. Então eu chamei os companheiros e disse: eu me senti contemplado, mas temos que incluir a comunidade. Então foi feito todo o levantamento da força de trabalho de cada família. Eu tinha muda boa e propus que o plantio fosse na forma de mutirão, um ajudando o outro. Eu não aceitei a proposta individual do Banco do Brasil e da Emater e respondi que só entrava se a comunidade fosse incluída. Deu uma crise muito grande, o Incra veio pra cima, os técnicos disseram que aquela decisão contrariava a posição deles, que a nossa família era a família que deu certo, etc. Mas nós fomos firmes e conseguimos incluir todo mundo. Naquele tempo, uma muda de pimenta estava em torno de sete cruzeiros. A força da comunidade resultou na conquista do financiamento para todo mundo. Mas como as pessoas tinham medo de banco, de ficar inadimplente, pegamos o dinheiro da venda das mudas e aplicamos na compra de bezerro e uma vaca leiteira para cada família. Naquela época, todo mundo já tinha um pastinho. Nós nos preparamos para a safra. Caso alguém ficasse com dificuldade, a saída era vender os animais. A gente não queria era fica devendo pro banco. Aquilo foi o início da criação da caixinha comunitária da Linha Gaúcha. Depois veio a delegacia sindical regional do STTR de Santarém . Mais de quatro décadas após serem assentados nas margens da Transamazônica, alguns agricultores avaliam que a orientação do governo e a ignorância dos colonos em relação ao valor da floresta em pé produziu uma intervenção que resultou em grande prejuízo ao meio ambiente, conforme lembra ICW: “Não tinha orientação, meus irmãos derrubaram castanheira, derrubaram tudo, hoje a gente fica refletindo, meu Deus, como a gente era louco” . AG recorda da quantidade de gente para o corte de uma árvore, dentro do lote de sua família: Eu lembro que meu pai derrubou uma árvore de piquiá e precisou de cinco ou seis pessoas cortando juntos. O corte era com machado e a árvore era tão grossa que hoje eu fico imaginando qual a idade daquela árvore. Talvez ela tivesse mil anos. Ou seja, a terra era rica para aquele tipo de árvore, mas pobre para aquilo que a gente queria plantar . VG avalia hoje que o tamanho dos lotes distribuídos aos colonos poderia ser até menor se todos fossem assentados nas terras férteis: Se o Incra tivesse feito uma análise do solo da Transamazônica como um todo, teria assentado todo mundo na região de terra roxa e o lote nem precisava ser de cem hectares. Dez hectares de terra bem trabalhada e estaria todo mundo bem de vida. Ali, o solo tem três ou quatro metros de profundidade de terra fértil. Nem precisava ter derrubado tanto a floresta. Mas onde nós estávamos, a camada fértil era de dois centímetros. O governo nunca forneceu ou orientou sobre o uso de calcário, que é o grande problema para a agricultura familiar na Amazônia. As memórias dos colonos da Transamazônica remetem-nos para a reflexão feita por Loureiro (2001) a respeito das decisões contidas nos planos e projetos governamentais para a Amazônia: A Amazônia seria um macrossistema homogêneo de floresta, rios e igarapés em toda a sua extensão. A natureza em geral, e em especial a floresta, seria a expressão do primitivismo e do atraso regionais; os planos governamentais estimulam sempre sua substituição por atividades ditas ‘racionais’, produtivas. (...) A maior riqueza da Amazônia – sua biodiversidade -, tem sido, na prática, ignorada, questionada e combatida sistemática e implacavelmente pelas políticas públicas (LOUREIRO, 2001, p. 252). Considerações finais A experiência dos colonos assentados nas margens da rodovia BR-230, a Transamazônica, entre Brasil Novo e Itaituba, a partir de 1970, guarda semelhança com o que viveram os imigrantes europeus instalados, 70 anos antes, ao longo da extinta Estrada de Ferro de Bragança (EFB). Os mesmos sentimentos de frustração em relação ao que lhes foi prometido, como a preparação de área para o primeiro plantio; as doenças endêmicas; a ausência de alimentos que faziam parte do cardápio de seus lugares de origem; bem como o desconhecimento da floresta e de suas riquezas. O mesmo que viveram os nordestinos empurrados para trabalhar na extração do látex da seringueira, e depois, por ocasião da colonização das margens das rodovias Belém-Brasília (BR-010) e Pará-Maranhão (BR-316), no Estado do Pará, entre as décadas de 1950 e 1960. A preocupação do Estado é com a ocupação do espaço amazônico, sem se importar com as condições de vida dos migrantes, que em sua maioria, é constituída de famílias de agricultores pobres. O papel de parceiros, como a Igreja Católica, por meio da implantação das Comunidades Eclesiais de Base, foi importante para ajudar no rompimento de preconceitos, na busca de uma identidade. Destaca-se também a organização do poder local a partir das cantinas comunitárias, chamadas de “revendão”, “caixinhas comunitárias” - a poupança dos associados; ações que permitiram a aquisição de caminhões e outros equipamentos necessários ao cultivo e comercialização dos produtos dos migrantes da Transamazônica. Portanto, os relatos expostos neste trabalho nos apontam a forma como foi feito o planejamento público visando o deslocamento populacional; o estímulo à destruição da floresta; e as estratégias dos entrevistados para enfrentar as adversidades. Os colonos tiveram que romper com os padrões que lhes foram impostos e buscar soluções para fortalecer os laços de solidariedade e a integração das comunidades e suas culturas, num projeto que resultou na criação de delegacias sindicais e outras formas de organizações coletivas, que compensaram, em parte, a ausência de políticas públicas voltadas à agricultura familiar. Referências: CONCEIÇÃO, Maria de Fátima Carneiro da; OLIVEIRA, Aline Reis de; VIANA, Jamerson Rodrigues Monteiro. Políticas agrárias e estrutura fundiária na Zona Bragantina: Nordeste Paraense. In: NETO, José Maria Bezerra, GUZMÁM, Décio de Alencar (orgs). Terra Matura: Historiografia e História Social na Amazônia. Belém: Paka-Tatu, 2002. EMMI, Marília Ferreira. Italianos na Amazônia (1870-1950): pioneirismo econômico e identidade. Belém: NAEA, 2008. FERREIRA, Rubens da Silva, COSTA, Érica Elaine. Imigrantes espanhóis na Amazônia Paraense: em direção à construção de entendimentos a partir das passagens subvencionadas pelo Governo Paraense (1896-1899). In: XXVI SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA. São Paulo, 2011. Anais [...]. São Paulo: ANPUH, 2011. IANNI, Octavio. Origens agrárias do Estado brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1984. LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. Desenvolvimento, Cultura e Meio Ambiente. In: SIMÕES, Maria do Socorro (org). Cultura e Biodiversidade: entre o rio e a floresta. Belém: Editora da UFPA, 2001. MARTINS, José de Souza. A reforma agrária e os limites da democracia na “Nova República”. São Paulo: Hucitec, 1986. MIRANDA NETO, Manoel José de. O dilema da Amazônia. Belém: Cejup, 1986. PERDOMO, Rosa Pérez. Os efeitos da migração. Ethos Gubernamental, v. 4, p. 111-124, 2006. SANTOS, Roberto Araújo de Oliveira. História Econômica da Amazônia: 1800/1920. São Paulo: T.A. Queiroz, 1980. SMITH JÚNIOR, Francisco Pereira. Imigração Espanhola na Amazônia: as colônias agrícolas e o desenvolvimento socioeconômico do Nordeste paraense (1890-1920). 212 f. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido) – Universidade Federal do Pará. Belém, 2012.

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