Transcrito do blog Memórias do Pará, de José Carneiro
Certamente muitas pessoas – ainda que nativas destas paragens amazônicas – não sabem o que é, ou simplesmente nunca viram, um olho de boto. Ao vivo, por exemplo, é empreitada um tanto difícil pois mesmo quando se percebe os simpáticos cetáceos por perto de alguma embarcação, raramente se consegue observar bem os seus os olhos, quase sempre semi-abertos. Por outro lado, boa parte da população sabe para que serve o olho de boto que se compra nas feiras, nas barracas de venda de mandingas, simpatias, banhos e outras coisas do gênero. Você, caro leitor, sabe pra que serve o olho de boto? Conforme uma mandingueira que entrevistei na feira do Ver-o-Peso para tratar deste assunto, ele serve para suprir quase todas as carências do ser humano, sendo tantas as suas finalidades benfazejas que não tenho espaço suficiente para relacioná-las. Um exercício de imaginação de qualquer um pode resolver, facilmente, essa questão.
Da mesma forma, um relativo desconhecimento também ocorre em relação à música, por exemplo. Às vezes uma canção faz sucesso e a maioria dos que a apreciam não tem a menor idéia de quem a compôs. Normalmente é apenas o cantor que recebe, não só os aplausos, quando ao vivo, mas o reconhecimento do público, pela interpretação feita na gravação tornada um sucesso popular. Isso tem sido comum no Brasil e até mesmo letras de músicas já foram compostas tentando advertir que o nome do compositor precisa ser melhor divulgado, para não ser jamais esquecido. O “Olho de Boto”, de que comecei falando, tem a ver não só com mandinga, mas, sobretudo, com poesia e música, servindo de motivo para se mencionar o desagradável esquecimento a que os compositores tem sido vitima. Vou ser mais explícito. Quem frequenta a noite, os barzinhos da vida com música ao vivo ou mecânica, quem aprecia a música popular paraense, já deve saber a respeito do que estou escrevendo. Trata-se da música “Olho de Boto”, gravada inicialmente em disco LP pelo cantor Nilson Chaves, no ano de 1981, em dueto com Vital Lima e, a partir dai, sucesso permanente em quase todos os repertórios de nossos cantores, consagrados ou iniciantes, que desfilam a música paraense em suas apresentações. É difícil mensurar mas “Olho de Boto” tem se tornado um ícone desses eventos musicais, sempre pedida pelo público, que não se cansa de ouvi-la, curti-la e aplaudi-la. Já identifiquei, aqui, a música e os cantores que a lançaram em disco, tanto nos antigos LPs quanto nos, também já quase antigos ma nom troppo, CDs. Quem é, porém, o compositor dessa peça consagrada e que eu considero uma declaração de amor por Belém? Ele tem nome extenso, chama-se Cristóvam José Souza Henriques de Araújo, ou simplesmente, Cristóvam Araújo, paraense da gema e vidrado de sentimentos por esta Belém do Pará. Cristóvam Araújo é, hoje, funcionário aposentado da Caixa Econômica Federal, residente no Rio de Janeiro desde 1982, mas com suas raízes físicas e culturais todas enrodilhadas nesta capital. E o “Olho de Boto’ vem a ser uma síntese dessa profunda vinculação com a água e com as ruas, novas e velhas, que forjaram a sua personalidade, desde o nascimento até o momento de cortar o cordão umbilical com a cidade dos seus sonhos e de seus amores recorrentes.
Cristóvam Araújo, nascido em 1951, estudou no “Colégio do Carmo”, no “Paes de Carvalho”, ingressou na UFPA pelo curso de Letras, que concluiu no Rio de Janeiro, foi um militante político engajado na luta contra a ditadura e pela democracia, viveu as agruras do chumbo grosso derretido pelo famigerado AI-5, foi professor secundarista, repórter da “Folha do Norte” e de “O Liberal”, participou de grupos de teatro e de movimentos em defesa da Amazônia e, sobretudo, manteve com a poesia um vasto campo de preocupação permanente. Ele é um poeta, na verdadeira acepção da palavra, observador da paisagem e da vida que fluem ao seu redor, com um espírito crítico e com a palavra vibrante e acesa, como cantou admiravelmente o Quinteto Violado mas, como diria Che Guevara, “sem jamais perder a ternura”, se me perdoam o lugar já tão comum, embora ainda belo e significativo e tendo tudo a ver nos conturbados momentos que o mundo atravessa. O inspirado autor de “Olho de Boto” é um apaixonado, pela família, pela cultura, pela sua cidade natal e até pela Cidade Maravilhosa, onde vive provisoriamente com a mulher Claudia e a filha Clara. Não foi à toa que seu primeiro livro se chamou "Cidade", lançado em Belém no último dia em que permaneceu por aqui, precisamente a 23 de abril de 1982. No dia seguinte ele se transferiu, com armas, bagagens e saudades para o Rio de Janeiro. Sua poesia continuou, entretanto, vinculada á cidade onde nasceu e daí começaram a surgir os muitos poemas que a lembrança estimulava e atiçava. “Olho de Boto” nasceu assim, num desses repentes saudosos, em que o banzo açulava a sua veia poética, como ele mesmo me relatou: “quando vim para o Rio de Janeiro, eu não supunha que fosse sentir tanto a falta de Belém, quanto senti. E ainda hoje, embora distantes, a cidade, as pessoas, e o tempo anterior à minha vinda, permanecem feito lembranças e saudades. Escrevi várias poesias cujo tema era Belém, e o Nilson Chaves musicou e gravou “Olho de Boto”. Quando, estando em Belém, pela primeira vez a ouvi no rádio, depois nos bares, na Feira do Açaí, e percebi o quanto ela havia sido bem recebida, a sensação foi como a de ter uma declaração de amor correspondida pela (cidade) amada”.
Aos 57 anos (ele tinha apenas 30 quando partiu) e tendo que se dedicar aos compromissos profissionais de horário rígido, Cristóvam Araújo não se descurou da poesia e continuou fazendo músicas e poemas. Com o cantor e compositor Carlos Henry teve musicado e gravado o poema “O Rei e o Frevo” no LP “Gerações” (1980/1981); ainda com Nilson Chaves foram gravadas as músicas “Rastros”, “Devaneios” e “Canções da Véspera”, em 1981. Seu nome foi incluído na coletânea organizada por Olga Savary, “Poesia do Grão Pará”, (Graphia Editorial, Rj, 2001) justamente com “Olho de Boto” e mais os poemas “Insone” e “Canção da Madrugada”. Transcrevo, a seguir, a letra de “Olho de Boto”, para que os leitores possam aferir o que é um hino de amor por uma cidade, em versos tão fortes e sensíveis. Com ela e com seu autor, presto minha homenagem a Belém, no aniversário de sua fundação, que transcorre amanhã, 12 de janeiro de 2009:
Olho de Boto
E tu ficaste serena
Nas entrelinhas dos sonhos
Nos escaninhos do riso,
Olhando pra nós, escondida
Com os teus olhos de rio
Viestes feito um gaiola
Engravidado de redes,
Aportando nos trapiches
Do dia a dia e memória
Com os teus sonhos de rio
E ficaste defendida
Com todas as suas letras
Entre cartas e surpresas,
Recírio, chuva e tristeza
Vês o peso da tua falta
Nas velas e barcos parados
Encalhados na saudade
De Val-de-cans ao Guamá
Porto do Sal das lembranças
Das velhas palhas trançadas
Na rede de um outro riso
Às margens de outra cidade
Ah, os teus sonhos de rio!
Olho de boto
No fundo dos olhos
De toda a paisagem
Texto: José Carneiro
email: jqcarneiro@uol.com.br
Eu nem lembrava que foi no dia primeiro de agosto de 1984 que publiquei, no jornal O Liberal, a primeira entrevista com Quintino Silva Lira, líder dos posseiros da Gleba Cidapar, que reagiu à grilagem de terras e organizou um grupo para resistir aos pistoleiros da região da Pará-Maranhão (rodovia BR-316) entre os rios Guamá e Gurupi. Quem me ajudou a recordar aquele trabalho foi a pesquisadora Juliana Patrizia Saldanha de Souza, de Santa Luzia do Pará, mestra em Linguagens e Saberes na Amazônia pela Universidade Federal do Pará. Acompanhei desde 1983 aquele conflito fundiário que envolvia 10 mil famílias de pequenos agricultores e empresas agropecuárias, numa área de 387 mil hectares. Compartilho aqui a postagem que a Juliana fez sobre o nosso encontro virtual, em 15/08/20. As fotos são do repórter-fotográfico Alexandre Lima, durante uma de nossas reportagens na Gleba Cidapar, um ano antes da entrevista, em 25 de setembro de 1983. Diário de uma Pesquisadora: QUINTINO LIRA e eu!
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