Em ano de eleição municipal a expectativa era grande. Tinha até bolão para saber quem acertava o resultado: liberação ou manutenção do aprisionado bondinho. Tinha sempre um candidato que prometia alforriar o vagão turístico; contava com muitos simpatizantes e aparecia bem na corrida em busca de votos. De outro lado, muitos eleitores apoiavam o postulante que anunciava manter o bondinho encarcerado. O tema dividia a cidade em duas grandes torcidas, semelhante aos clássicos de futebol: Palmeiras e Corinthians; Vasco e Flamengo; Grêmio e Internacional; e Remo e Paysandu.
Na pauta das eleições, os outros problemas da cidade eram tratados de forma secundária. O que mobilizava, o que atiçava mesmo os militantes dos partidos era o destino do bondinho. Os discursos polarizavam-se: contra e a favor da circulação do veículo. Formaram-se as torcidas organizadas. Paixão do Bondinho, Nação James Bond eram as dos fanáticos pela liberação do veículo. A favor do enclausuramento, a Charanga da Masmorra e a Raça Xilindró.
Pouca gente lembra quando foi que começou a disputa em torno do veículo sobre trilhos. O que ninguém esquece foi a causa. O novo prefeito entendeu que, como o coletivo fez parte da história da cidade, no início do século XX, não tinha sentido reintroduzir no caótico trânsito da capital um tipo de transporte ultrapassado, fora de moda. Mesmo que fosse só para turistas. Mas ninguém acreditava nisso. A verdadeira causa era apagar a ação do gestor que implantou o equipamento e o serviço. Política pequena, rasteira. Houve reação de historiadores, urbanistas, operadores de turismo. Mas não teve jeito, o bondinho saiu de circulação.
A mídia silenciou e, como também tinha interesse em ocultar as realizações do ex-gestor, foi cúmplice da ação política de manter o bondinho no xadrez. Sim, porque a estação de partida e chegada do veículo foi transformada numa masmorra. Pesadas correntes e cadeados foram instalados no portão do galpão. O que acabou atraindo a atenção de muita gente. Dia de domingo se formavam longas filas para ver a máquina e seu estado de conservação.
Para evitar roubos de peças, o alcaide determinou a participação da guarda municipal no esquema de vigilância. As duplas se revezavam em turnos de 12 em 12 hora na proteção ao calabouço, que com o tempo começou a ganhar outros nomes: “Mausoléu do Bondinho”, “Palácio do Desperdício”, “Gaiola de Ouro”, “Caverna da Mesquinharia” e outros. A presença dos guardas também foi para impedir as pichações com críticas ao ato do gestor de plantão.
O Poder Judiciário foi envolvido. Impetraram mandados com pedido de soltura do bondinho. Alguns juízes até concediam liminares pela manhã. Mas à tarde um desembargador cassava a medida. E voltava tudo à estaca zero. Outros magistrados se declaravam sem condições de julgar porque eram integrantes ou tinham familiares que compunham as torcidas organizadas. O pleno do tribunal nunca conseguiu quórum para se reunir. E assim o tempo foi passando.
De dez em dez dias eram vistos mecânicos examinando e lubrificando as peças. Botavam o motor para funcionar e faziam a máquina se movimentar dentro do exíguo espaço da estação/penitenciária. Tinha também a turma da limpeza que varria, passava pano molhado no piso do galpão e nos bancos do trenzinho. Quase duas décadas se passaram e, em quatro eleições seguidas, venceram os candidatos favoráveis à clausura do bondinho.
O tema foi sumindo gradativamente do noticiário. Os jornais, as emissoras de rádio, TV e as novas mídias digitais já não pautavam matéria fora do período eleitoral. E se reduziram também as caravanas de estudantes do interior do Estado, curiosos por conhecer o encarcerado ilustre. As agências já não incluíam em seus roteiros turísticos o “Mausoléu do Bondinho”. Mas indicavam como um point que poderia ser acertado por fora com os guias. Diminuíram os objetos de cera que os pagadores de promessa depositavam no carro dos milagres durante a festa da padroeira da cidade.
Foi justamente num período de remanso que estourou a bomba. Numa madrugada úmida, por conta da chuva que se prolongava desde a tarde do dia anterior, os guardas dormiam a sono solto quando chegaram homens usando máscaras de proteção contra gases tóxicos. Primeiro desligaram as câmeras de vigilância. Depois, se arrastando pela calçada, espargiram, pelas frestas da grade que protegia o galpão, um tipo de gás de pimenta para apagar temporariamente os vigilantes que foram manietados, amarrados e retirados de combate enquanto agiam os malfeitores.
Em seguida, estouraram os cadeados e abriram o portão. Começou então a operação desmonte do bondinho. Enquanto homens armados bloqueavam e vigiavam as esquinas, uma turma começou a cortar o veículo de forma a facilitar o içamento das partes mais pesada para cima das carretas estacionadas na frente do prédio. Uma hora de trabalho foi suficiente para encher três jamantas que foram cobertas com lonas e partiram, escoltadas por veículos batedores.
Quando o dia amanheceu, ainda chuvoso, os primeiros trabalhadores das casas comerciais vizinhas perceberam que a “penitenciária” do bondinho estava vazia. A notícia se espalhou e logo virou pauta dos telejornais nacionais. Seis meses depois a Polícia do Estado vizinho descobriu vestígios do veículo numa oficina de ferro velho. Mesmo destino que teve a estrutura do reservatório de água, construído no início do Século XX na área histórica da cidade.
O bondinho não figura mais no programa de governo dos candidatos a prefeito. Só os mais velhos lembram da história. Na roda de engraxates, próximo ao “Mausoléu”, tem gente que prefere nem falar no assunto. E recomenda o esquecimento, semelhante ao que fizeram os paulistas, que passam no Anhangabaú e nem sabem que ali existiu um rio. Ou os cariocas, que já não têm lembrança das laranjeiras de um bairro famoso
(Paulo Roberto Ferreira).
Felipe Alves de Macedo, o Filipinho, deixou a Terra. Foi ao encontro de seus companheiros de luta no Araguaia: Raimundo Ferreira Lima (Gringo), João Canuto, Expedito Ribeiro e tantos outros bravos camponeses que lutaram e tombaram na luta pelo direito de viver e produzir no campo. Dedicou seus 81 anos de vida ao cultivo da terra como animador de comunidade, na organização e resistência dos lavradores, em Conceição do Araguaia. Filipinho foi presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Conceição do Araguaia, dirigente da Central Única dos Trabalhadores (CUT-Pará) e membro do Partido dos Trabalhadores. Viveu parte de sua vida sob ameaça de pistoleiros a serviço do latifúndio. O ex-dirigente do STTR fez parte de uma lista de “marcados para morrer”. O repórter-fotográfico João Roberto Ripper, que integrou a agência F-4, fez um registro, em 1980, com seis pessoas ameaçadas: Maria da Guia, Josimar, Filipinho, Oneide Lima (viúva do Gringo), Luiz Lopes e João Pereira. O jornalista, em...

Texto maravilhoso
ResponderExcluirObrigado, professor Marcelo.
ExcluirLamentável, isto é um crime. Dia desse logo depois de ver o resultado de uma pesquisa e mesmo por acreditar na Vitoria de Edmilson Rodrigues, postei uma frase no Facebook dizendo. "AGORA O TREM VEM PRO TRILHO " Era uma das vontades, dar uma volta no trem... Vamos ficar na vontade
ResponderExcluirFato desolador, embora tristemente usual numa sociedade cujas autoridades não prezam a memória, o que fica patente, em um giro atento pela cidade... mas o texto primoroso, contundente e elegante, gostoso de ler, como toda a produção do Paulo Roberto, que nos pega pelos olhos, em relatos quase cinematográficos. E viva o Paulo Roberto!!!
ResponderExcluirObrigado, Léo. Forte abraço pra você e saúde.
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