Paulo Roberto Ferreira. Ilustração: Jota Bosco.
A menina ardia em febre. A mãe, aflita, fez um chá de alho com limão e rezou pedindo a intercessão de Maria Santíssima. O marido deveria estar bebendo com os amigos no botequim do Manduca. A luz de lamparina de lata, alimentada por querosene, projetou a sombra da mulher na beira do fogão a lenha. O paneiro, com charque e peixe seco, pendurado num caibro do telhado, parecia bem maior do que era.
Madalena, a menina, gostava de brincar com as imagens projetadas pelo raio da luminária. Imaginava várias coisas que não conhecia. O cesto de palha, por exemplo, parecia um balão dirigível, que ela vira numa revista, no armazém do “seu” Raul. Mas naquela noite ela não tinha disposição para representar, na parede do barraco, os seus pássaros batendo asas, que eram as sombras dos dedos em movimento.
Mesmo embrulhada num lençol grosso, Madalena não suava. A febre não cedia, para desespero de sua mãe. Quando se sentou na rede para tomar o chá, Inácia percebeu que a sombra da guria não aparecia na parede. Justo Madalena, que fazia das imagens um divertimento, agora perdera a sua. Desconfiada da traquinagem daquela adolescente, a mãe ainda chegou a imaginar que pudesse ser uma trapaça de Madalena. Mas não era.
A aflição aumentou. Inácia via sua própria figura refletida pela luz bruxuleante da luminária, mas não a da filha. Começou a mexer os dedos, na contraluz, por cima da garota, mas a cabeça da jovem não aparecia na parede de enchimento e sem reboco. Assim que sorveu o último gole do chá quente, a menina voltou a deitar. Inácia acariciou a filha e repetiu várias vezes em voz alta:
- Vai passar, vai passar!
Meia hora depois, a única porta da casa começou a se movimentar. O barulho da dobradiça enferrujada provocava arrepios. Mas era o pai de Madalena, que entrava trôpego, gritando por Inácia e pedindo a janta. Contrariada, mas calada, a mulher obedeceu. Colocou no prato o resto de comida do almoço: arroz, feijão e charque. Ao lado, uma cuia com farinha de mandioca.
Raimundo come rápido, quase sem mastigar. Seus movimentos com a colher, do prato para a boca e vice-versa, refletem-se em vultos estranhos. Mais uma vez Inácia observa que, apesar do estado etílico do marido, suas sombras desfiguradas estão na parede, exibidas pelo foco tremeluzente. A mulher arrisca-se a ouvir uma bronca, porém decide contar, em curtas palavras, que a filha está com febre alta.
O homem não fala nada. Terminado o jantar, levanta-se da mesa e vai direto para sua rede. Deita-se e, em poucos instantes, começa a roncar forte. Um ronco a que todos na casa já estavam acostumados. Inácia toca novamente na menina e a febre continua elevada. Tateando, ela localiza o rosário e, calada, num canto do quarto, começa a rezar mentalmente cinco vezes a oração do pai-nosso e dez vezes a ave-maria.
O barulho na rede do marido desperta a atenção da mulher. Daí a segundos, Raimundo começa a se mover e levanta-se, silenciosamente. Com um andar diferente do normal, o homem caminha em direção à cozinha e, com voz serena, convoca a mulher pelo nome. Ela interrompe a oração e vai ao encontro do marido, meio desconfiada.
Sentado à cabeceira da pequena mesa de jantar, Raimundo estava de olhos fechados. Mas com um sinal, feito com a mão direita, ordena que a mulher fique bem próxima dele. Em seguida, uma voz feminina sai da boca do homem:
- Não tenhas medo, eu só quero conversar!
Com olhos dilatados, a boca seca e o coração disparado em seus batimentos, Inácia teve vontade de gritar e acabar com aquilo que julgava ser uma brincadeira na hora errada. Mas a voz pausada prosseguia:
- Isso não é uma brincadeira. Meu nome é Quitéria. Estou apenas usando o corpo e o aparelho fonador do teu marido para te explicar o porquê da tua filha estar com febre.
Inácia começou a tremer descontroladamente. Suas mãos, que estavam sobre a mesa, registravam o desequilíbrio de todo o seu corpo. Contudo, o simples toque da mão do Raimundo/Quitéria em sua testa cessou aquele estado de perturbação, semelhante água fervendo na panela.
- Tua filha está sem sombra porque andava com moleques bagunceiros, que não respeitam as coisas sagradas da natureza. Eu sou a guardiã da fonte de onde vocês retiram água para beber. Tem gente que entra lá sem fazer o sinal da cruz e sem pedir licença para apanhar água. E o que é pior, gritando, cantando, fazendo barulho.
A mãe da menina ouvia as palavras de Quitéria como se estivesse escutando uma reprimenda de sua tia Juventina, ou de sua avó Ramira, que sempre a alertaram sobre o cuidado que todo cristão deveria ter com lugar de onde brota a água.
- Ali na fonte – prosseguia Quitéria – é lugar de respeito, de reflexão. Eu estou aqui falando também em nome de vários encantados que me ajudam a tomar conta da nascente.
Inácia ousou interromper o monólogo:
A conclusão deste conto está em “Mosaico Amazônico”:
https://www.editorapakatatu.com.br/product-page/mosaico-amaz%C3%B4nico
Felipe Alves de Macedo, o Filipinho, deixou a Terra. Foi ao encontro de seus companheiros de luta no Araguaia: Raimundo Ferreira Lima (Gringo), João Canuto, Expedito Ribeiro e tantos outros bravos camponeses que lutaram e tombaram na luta pelo direito de viver e produzir no campo. Dedicou seus 81 anos de vida ao cultivo da terra como animador de comunidade, na organização e resistência dos lavradores, em Conceição do Araguaia. Filipinho foi presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Conceição do Araguaia, dirigente da Central Única dos Trabalhadores (CUT-Pará) e membro do Partido dos Trabalhadores. Viveu parte de sua vida sob ameaça de pistoleiros a serviço do latifúndio. O ex-dirigente do STTR fez parte de uma lista de “marcados para morrer”. O repórter-fotográfico João Roberto Ripper, que integrou a agência F-4, fez um registro, em 1980, com seis pessoas ameaçadas: Maria da Guia, Josimar, Filipinho, Oneide Lima (viúva do Gringo), Luiz Lopes e João Pereira. O jornalista, em...
Comentários
Postar um comentário