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A reação da periferia

(Paulo Roberto Ferreira) A professora subiu no ônibus e duas quadras depois embarcaram três adolescentes. Havia muitos assentos livres, mas os meninos não se sentaram e nem se aproximaram da catraca. Dois ficaram na retaguarda e um chegou mais perto do cobrador. A professora olhou para trás e viu que um dos garotos era seu aluno. Ele percebeu, virou o rosto na direção de seus companheiros e a voz saiu gutural: - Sujou. Na parada seguinte os jovens desceram, correram por trás do coletivo e se esquivaram por uma travessa, desaparecendo da vista dos passageiros e do condutor do veículo, que ainda os acompanhou pelo retrovisor. A professora e outros viajantes do transporte urbano suspiraram aliviados. E o trocador expressou o sentimento dos que pressentiram o perigo: - Escapamos de um assalto! Passado o susto, aquela frase permaneceu ecoando na mente da professora Sandra. A sensação de fracasso abalou o ânimo da educadora. A viagem parecia não ter fim. Tão distante estava que passou do ponto onde deveria descer. O reencontro com os familiares a fez esquecer, temporariamente, o desagradável episódio. Mas na hora de dormir, as imagens e a frase do motorista voltaram a incomodá-la. Ficou recordando os anos de preparação para o exercício do magistério. Tentava identificar sua parcela de responsabilidade no futuro daquele garoto. Será que é o único da turma que tomou aquela trilha? Sandra sabia que Denis morava com a avó materna, assídua frequentadora das reuniões de pais e mestres, que apostava muito no crescimento cultural do neto. O sono arrastou a professora para um local sombrio. Ali ela via crianças prestando contas a homens de aparência sórdida. Não conseguia ouvir o diálogo entre eles, mas os meninos pareciam encurralados, em defensiva, humilhados. Entregavam dinheiro para um dos homens e passavam para outra fila, onde recebiam pequenos pacotes. As personagens se movimentavam como num filme de Carlitos, no tempo do cinema mudo. O sonho foi interrompido e a jovem professora acordou assustada. Ouviu barulho de cães, o apito do guarda-noturno e o canto de uma ave da noite. Levantou, tomou água e foi ao banheiro. Voltou para a cama, mas o sono não veio. Ficou um bom tempo tentando pensar em coisas agradáveis, em recordações de viagens, festas de aniversário dos filhos etc. Mas só as lembranças do sonho é que teimavam em permanecer em sua mente. Para fugir daquelas imagens, levantou-se, pegou um livro e passou para outro cômodo da casa. Começou a ler na expectativa de atrair o sono. Mas não conseguiu se concentrar no texto. Aos poucos foi relaxando e cochilou ali mesmo na poltrona. O desconforto e o sono entrecortado deixaram seu corpo extenuado. Passou a manhã dispersa, em casa, enquanto planejava suas aulas. Quando chegou à escola, no início da tarde, Sandra procurou outros professores para saber mais informações sobre a vida de Denis. Os relatos a deixaram ainda mais atordoada. Os próprios colegas de turma e vizinhos do jovem contavam que ele já se envolvera em pequenos furtos, em outros bairros. E policiais o ameaçavam de morte. Algumas semanas se passaram e as aulas foram interrompidas, no meio da tarde, sob o impacto do assassinato de Denis. Seu corpo foi encontrado, cheio de projéteis, nas matas de um parque ambiental, local utilizado por alguns policiais, alcunhados de “justiceiros”, para esconder cadáveres de suas vítimas. A notícia mexeu com boa parte dos professores, que lamentava não ter conseguido interromper aquela anunciada trajetória. Os mestres criticaram o papel da Polícia e órgãos responsáveis pela infância e adolescência. Sandra já não conseguia ouvir os comentários de seus colegas, na sala de professores. Movimentou-se em direção a sua casa, quase como um robô. E ali passou horas refletindo sobre aquela tragédia. Olhou para seu filho, que tinha aproximadamente a mesma idade de Denis e desabou num choro silencioso. Imaginou como se sentiria se aquele infortúnio se abatesse sobre sua família. Questionou a si mesma por que o Estado não assegura os direitos fundamentais do cidadão. Por que, vivendo na mesma cidade, seu filho tem a possibilidade de uma vida em segurança, enquanto Denis teve a sua interrompida? E assim ficou horas, tentando encontrar uma explicação para tanta desigualdade social. Sandra concluiu, naquele momento, que a escola falhou; a assistência social, o órgão de segurança pública, o poder judiciário e um conjunto de outras instituições que deveriam materializar aquilo que está previsto nas normas sobre a proteção do ser humano. Ou seja, não cumpriram o objetivo de suas missões. Mas nada disso conseguia arrancar aquele sentimento de impotência e de frustração que tomou conta do seu espírito. Queria que a vida interrompida de Denis fosse capaz de inspirar mudanças na forma de agir de professores, técnicos e alunos, que em muitos casos, são os primeiros a perceber sinais de alteração no comportamento de um integrante da comunidade. Desejava mais. Que a escola fosse capaz de ir além de uma instituição geradora e reprodutora de conhecimento, que também cumprisse um papel ativo de ajudar a pensar que a vida de cada um de seus integrantes importa para todos, para ele próprio, para a comunidade, para o País, para o mundo. Três dias após o assassinato de Denis a escola se transformou em palco de amplas discussões sobre o futuro da juventude. A professora Sandra convenceu seus colegas a suspender as aulas por uma semana e a direção concordou coma proposta. No lugar do conteúdo das disciplinas, convidados de diversas instituições estimulavam a fala dos estudantes sobre outras crianças e adolescentes que sumiram, ou foram assassinadas pelos tais “justiceiros”. A mídia foi convidada a acompanhar os debates e os ricos depoimentos começaram a ser publicados, resguardando o sigilo da fonte. O que costumava ficar restrito ao bairro, passou a ser abordado na Câmara Municipal, no Conselho de Educação, no Conselho Tutelar, no plenário da Assembleia Legislativa, nos centros comunitários, nas igrejas e por pessoas e instituições de municípios vizinhos. No sétimo dia da morte do adolescente Denis da Cruz, estudantes, professores e lideranças comunitárias saíram em caminhadas de todas as escolas em direção ao centro dos municípios da região metropolitana. Portavam faixas, cartazes, feitos à mão e gritavam palavras de ordem, exigindo o fim da impunidade e a prisão dos “justiceiros”, de seus financiadores e mandantes. As manifestações foram articuladas pelas redes sociais para coincidir todas no mesmo horário, com leitura, em praça pública, de um manifesto dando um ultimato aos governantes para porem fim ao Estado paralelo. Ao mesmo tempo, exigiam a instalação de equipamentos de inclusão social como ginásios esportivos, teatros, escolas de arte cênica, de artesanato, bibliotecas comunitárias e outras, nos municípios. O grito da periferia assustou os jagunços, que sumiram de lá. Serviu também para despertar as autoridades e mobilizar juristas, parlamentares, músicos, atores e outros expoentes, defensores de ações que promovam a cidadania e exijam o fim da, até agora, única resposta do Estado: repressão aos jovens que vivem nos bairros mais pobres da cidade. Quer conhecer o final? Lei o conto “A reação da periferia” no livro “Mosaico Amazônico”, de Paulo Roberto Ferreira, ilustração de J.Bosco. Você pode mandar buscar pelo Correio no site da Editora Paka-Tatu - Mosaico amazônico | Editora Paka-Tatu (editorapakatatu.com.br)

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