Pular para o conteúdo principal

Bom dia, maestro!

Paulo Roberto Ferreira No trajeto entre o distrito de Icoaraci e o centro de Belém, o homem cochilava. A cabeça tombava, ora para um lado, ora para o outro. Mas segurava firme a mala preta sobre o colo. Em formato diferente, arredondada num extremo e alongada no outro, a bolsa chamava a atenção de outros viajantes, já acostumados com aquela presença nos ônibus que faziam a última viagem da noite e a primeira da manhã do dia seguinte, quando ele retornava do trabalho para casa. Nos intervalos de sonolência, aquele homem franzino, pele escura, estatura baixa, retirava do estojo folhas de papel pautado contendo símbolos que ninguém entendia o significado. Lia atentamente e guardava novamente. Ele viajava sempre sentado, porque morava próximo ao ponto final da linha do transporte coletivo, na primeira rua da antiga Vila de Pinheiro, em frente ao rio. Quando voltava ao lar, pegava a condução no terminal do centro histórico, aberto 24 horas, no Boulevard Castilhos França, atrás das oficinas do jornal Folha do Norte. Sempre vestido de terno preto, camisa branca e gravata azul-marinho, Leôncio de Jesus, quando desembarcava no centro da cidade, passava para outro coletivo, que o conduzia ao seu local de trabalho. Às vezes, tomava o “Pedreira Lomas”. Em outros dias, entrava no “Sacramenta”. Mas seu destino também poderia ser alcançado nos ônibus que se deslocavam para o Jurunas, Guamá, Condor, Canudos, São Braz, Marco, Telégrafo, Souza e outros bairros de Belém. O encontro com os colegas era sempre uma oportunidade para avaliar o trabalho do dia anterior e tomar conhecimento do local da apresentação do grupo, no dia seguinte. A segunda-feira era destinada à folga de todos. Uma hora antes do início da jornada começavam os ensaios. A orientação do chefe era para não se alimentarem de comidas pesadas. O consumo de bebida alcoólica era proibido. Cada um era dono e deveria zelar bem pelo seu instrumento musical. Leôncio tocava saxofone. Aprendeu ainda garoto, no município onde nasceu, no Arquipélago do Marajó. Seu pai e tios participavam de um grupo regional, na cidade de Chaves. Ao se mudar para Belém, passou a frequentar a escola de música de um sargento do Exército. Com o suboficial Bezerra, iniciou a leitura das primeiras partituras. Primeiro aprendeu a tocar violão; depois flauta e, finalmente, sax. Viajava com as melodias e se via em outros lugares, até alguém da família o despertar daquela fantasia que o arrastava para longe das margens do rio Pará. O tempo passou e, com o maestro Maçaneta, ampliou seus conhecimentos musicais. O segundo mestre o convocou para integrar seu conjunto de jazz, a sensação dos anos 1950. O convívio com instrumentistas experientes despertou ainda mais o interesse do jovem marajoara. Na época, as músicas mais executadas eram: “Only You”, “Smoke Gets In Your Eyes”, “Love is a Many Splendoured Thing”, “I’ve Got You Under My Skin”, “Stopin’at the Savoy”. As primeiras apresentações do jovem artista foram em clubes de bairros periféricos da capital paraense, como o São Domingos, no Jurunas; o Santa Cruz, na Pedreira; o Almirante, no Arsenal; o Sinucas, no Telégrafo; o Brasilândia, na Sacramenta; o Estrela do Norte, no Guamá, e o Ferroviário, em São Braz. Um de seus ídolos era Ray Conniff, que ouvia nas emissoras de rádio. Naquela época, Leôncio ainda era classificado como “músico de gafieira”, pois os conjuntos que não tocavam nos clubes localizados nos bairros mais próximos do centro da cidade eram daquela forma rotulados. Aquilo o incomodava. Conhecia musicistas do seu nível, tratados diferentemente (e ganhando muito mais) porque integravam grupos badalados nas colunas sociais dos jornais. Então, após dez anos de espetáculos na periferia, ele foi convidado a integrar a orquestra de Orlando Pereira e outros maestros tratados com grande reverência pela mídia, recebidos de maneira festiva nas sedes do Automóvel Clube, Grêmio Literário Português, Pará Clube, Paysandu, Clube do Remo, Assembleia Paraense, Monte Líbano, Tuna Luso Comercial e outros. Organizado, disciplinado, dedicado e sempre receptivo às novidades, bem como aberto às críticas, Leôncio foi conquistando seu espaço até ser reconhecido, no meio em que atuava, como “músico de orquestra”. No ápice da carreira foi indicado a compor a Sinfônica da Rádio Marajoara, emissora do Grupo Diários Associados, de Assis Chateaubriand, que tinha em sua grade vários programas de auditório. Pela primeira vez ele teve a carteira assinada como músico e conseguiu amealhar recursos que lhe permitiram comprar uma casa para a família, às proximidades da Ponte do Galo, no bairro do Telégrafo. Apesar de morar mais próximo de seus compromissos, Leôncio continuou se deslocando de ônibus e seu ofício permanecia invisível para a maioria da população. Seu momento de maior reconhecimento profissional aconteceu após conhecer um maestro paraibano, deslocado de João Pessoa, para reger a orquestra da emissora do bairro de Nazaré, a AM que detinha a segunda maior audiência do rádio no Pará. Quando partiu para outra cidade, o regente da orquestra indicou Leôncio como seu substituto. No retorno para casa, o maestro ficava imaginando como seria o ambiente musical em New Orleans, afamada como berço do jazz. Pelas ondas do rádio, Leôncio tomava conhecimento da efervescência cultural daquela cidade norte-americana. Mas sabia serem remotas as possibilidades de conhecer a terra que consagrou grandes ídolos, como Louis Armstrong, King Oliver, Sidney Bechet e Jelly Roll Morton, entre outros. Nada, porém, o impedia de sonhar com o espetáculo das big bands. Da mesma forma, o músico devaneava em direção às renomadas gafieiras do Rio de Janeiro e São Paulo, onde a música instrumental era muito valorizada. Leôncio se imaginava na “Som de Cristal”, ou no “Atlântico”, em São Paulo, e, ainda, nas célebres “Estudantina Musical” e “Elite”, no Rio. Mas os sacolejos do ônibus o reconduziam à realidade do bairro do Telégrafo, em Belém do Pará. E aos planos de trabalho para o dia seguinte. Quando ingressou na Orquestra da Rádio Marajoara, o antigo “músico de gafieira” passou a trajar um fraque no lugar do paletó. A nova vestimenta despertava ainda mais curiosidade entre os passageiros do primeiro ônibus da manhã. Certo dia, quando voltava para casa, no carro da linha Mauriti-Ponte do Galo, foi traído pelo sono, na altura da antiga Praça do Índio. A penumbra no interior do coletivo e a presença de poucos passageiros permitiu a retirada, sorrateira, do estojo com o sax, do colo do maestro, por um ladrão muito habilidoso, famoso na crônica policial pela leveza de sua mão ao bater carteira porta-cédula, nas paradas, ou dentro dos coletivos. O larápio desceu do carro com o instrumento musical dentro de um saco de pano e foi facilmente confundido com um dos feirantes que se abasteciam na feira do Ver-O-Peso e voltavam para o bairro no primeiro ônibus, ainda de madrugada. Quando despertou, o maestro tomou um susto. Procurou o cobrador e o motorista, mas ninguém sabia informar o paradeiro de seu estojo preto. Ele foi ao posto policial do bairro da Pedreira e registrou a ocorrência. Em seguida, voltou ao estúdio da Rádio Marajoara e comunicou o furto ao redator de plantão. Para conhecer o final deste conto, leia o livro “Mosaico Amazônico”, editado pela Paka-Tatu. https://www.editorapakatatu.com.br/product-page/mosaico-amaz%C3%B4nico

Comentários

  1. Já li Mosaico Amazônico, do amigo Paulo Roberto. Excelente. Em breve vou publicar meu comentário.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O valor da grude para o pescador de Vigia

Encontrei no site MFRural(http://www.mfrural.com.br/busca.aspx?palavras=grude)o seguinte anúncio: "Estou a procura de bucho ou grude de pescada amarela ou corvina para exportar para Hong Kong/China e Estados Unidos". Trata-se de um espaço virtual onde compradores e vendedores se encontram para fechar negócios sobre produtos do campo e da água. Então pude compreender melhor a importância do anúncio que vi e fotografei na orla do município de Vigia de Nazaré, na região do Salgado, no Pará. A grude ou bexiga natatória de determinadas espécies de peixes ósseos, auxilia o animal a se manter em determinadas profundidades. Após ser beneficiada, a grude tem diversos usos, como colas de alto teor de adesão, bem como pode ser utilizado pela indústria espacial em operações cirúrgicas de alta precisão. O pescador coloca para secar por três a quatro dias a grude antes de vender por um preço que varia entre R$ 20 e R$ 30. Mas em grande quantidade o preço no mercado exportador chega até R...

36 anos da entrevista com Quintino e a resistência camponesa no Alto Guamá

Eu nem lembrava que foi no dia primeiro de agosto de 1984 que publiquei, no jornal O Liberal, a primeira entrevista com Quintino Silva Lira, líder dos posseiros da Gleba Cidapar, que reagiu à grilagem de terras e organizou um grupo para resistir aos pistoleiros da região da Pará-Maranhão (rodovia BR-316) entre os rios Guamá e Gurupi. Quem me ajudou a recordar aquele trabalho foi a pesquisadora Juliana Patrizia Saldanha de Souza, de Santa Luzia do Pará, mestra em Linguagens e Saberes na Amazônia pela Universidade Federal do Pará. Acompanhei desde 1983 aquele conflito fundiário que envolvia 10 mil famílias de pequenos agricultores e empresas agropecuárias, numa área de 387 mil hectares. Compartilho aqui a postagem que a Juliana fez sobre o nosso encontro virtual, em 15/08/20. As fotos são do repórter-fotográfico Alexandre Lima, durante uma de nossas reportagens na Gleba Cidapar, um ano antes da entrevista, em 25 de setembro de 1983. Diário de uma Pesquisadora: QUINTINO LIRA e eu! ...

Após o regatão, o rádio e a televisão

Atendendo ao pedido de várias pessoas, publico abaixo o artigo apresentado em 2005, em Novo Hamburgo (RS), no 3º Encontro Nacional da Rede Alfredo Carvalho (Rede Alcar), no GT sobre História do Rádio. Após o regatão, o rádio e a televisão Paulo Roberto Ferreira Resumo: A primeira emissora de rádio surgiu na Amazônia em 1928. Foi a Rádio Clube do Pará, em Belém, que teve um papel muito importante como veículo de integração. Antes do rádio, o contato entre o homem do interior da região e o mundo urbano, era feito pelo barco que abastecia os seringais e pequenas povoações com suas mercadorias. A “casa aviadora” ou “regatão” quebrava o isolamento e levava também as cartas dos parentes que viviam nas localidades, às margens dos rios. A televisão só chegou em 1961. Em Manaus muita gente captava o sinal de uma emissora da Venezuela, antes da chegada da primeira TV local. Mas, ainda hoje, na era da comunicação digital, o rádio cumpre importante papel na Amazônia, já que naquele imenso...