Paulo Roberto Ferreira -
À luz de lamparina, sustentada por uma pessoa da família, Maria José trabalha, orienta a respiração e empurra a barriga da grávida. A mulher grita, se contorce de dor, enquanto o marido, nervoso, espera por notícias do lado de fora da casa de madeira. Na pequena mesa, ao lado da cama, as toalhas limpas, a tesoura para cortar o cordão umbilical e uma garrafa com álcool.
No chão, bacias de alumínio. Com água quente, uma, a outra com água fria. Roupas do bebê na sacola, em cima da cômoda. Imagens de Jesus, Maria e São José, padroeiro da cidade, decoram a parede do quarto. Na sala, um calendário com o nome do santo do dia.
Parto demorado. A cabeça da criança não passa. O colo do útero tem pouca dilatação. A mãe sua muito. Faz força, mas não consegue parir. A parteira suspende o trabalho. Na cozinha, toma café, abre a porta do quintal, respira ar fresco, fuma um cigarro e volta para dentro da casa. A grávida relaxa um pouco.
Dez minutos depois, reinicia a labuta. As contrações aumentam, a mãe chora. Maria José abre a gaveta e de lá retira garrafas. Destampa e derrama nas mãos óleo misturado com ervas. Esfrega e massageia a barriga da gestante. Faz movimentos, puxando a criança em direção ao ventre da mãe.
A reza acompanha a fricção. Ninguém entende o significado das palavras. Parece uma mistura de latim com dialetos africano e indígena. A parteira trabalhava de olhos fechados e movimentando as mãos. Pouco tempo depois a cabeça da criança passa. A mãe, finalmente, respira aliviada. A menina nasce saudável e alegra a todos. Depois de tudo limpo, a mãe relaxada, foi a vez de o pai ter permissão para entrar e ver a filha.
Primeiro parto natural de Simone. Maria José recebe os cumprimentos por mais uma missão concluída. Voltou ao quintal em busca de ar puro e para fumar outro cigarro. A criança ganha nome: Vanda. A parteira não sabe dizer quantos bebês ajudou a nascer. Não anota nada e nem cobra pelo serviço. A gratidão chega em produtos do campo: farinha, frutas, legumes, galinha, pato e peixe. Recebe muitos convites para ser madrinha da meninada.
A velha parteira, neta de índio, aprendeu a partejar com a mãe, que assimilou a experiência da avó. Nenhuma de suas filhas seguiu o ofício de benzedeira-parteira. Desde criança, Maria José captou os rituais de cura e de puxar barriga de mulher prenhe. Ajudava no trabalho de roça; coletava sementes de seringueira, andiroba, patauá, ucuúba e pracaxi; ajudava a pescar e a moquear peixe.
A memória ancestral permitiu que ela desenvolvesse práticas xamanísticas, com massagens e puxamentos, para colocar a criança na posição de nascer. E a fortalecer a “mãe do corpo”, acompanhar o pré-natal e produzir garrafadas para refazimento da mãe, no pós-parto. A medicina da terra, que vem da força divina, mobiliza entidades e santos nas orações, durante as fomentações na barriga.
Maria José não recusa desafios. Viaja em canoa a remo e rabeta, em lombo de burro, bicicleta, motocicleta e caminhão pau-de-arara. Atende às grávidas em qualquer vilarejo de beira de rio, ou de estrada. Na sacola, a parteira leva ervas, vidros com óleos e essências, cascas e folhas de árvores da floresta amazônica.
Na fase do pré-natal identifica riscos e dificuldades na hora do parto. Quando a criança está atravessada, ou “em pé”, o trabalho de endireitar e colocar a cabeça na direção do ventre exige, em alguns casos, emplastros com alfazema torrada, gema de ovo, vinho tinto, leite-de-amapá, manteiga de cacau e jambu batido. Tudo isso é colocado sobre a barriga e enfaixado com um pano, deixando livre apenas o umbigo da mulher.
Maria José fez parto em vários ambientes. Com a mulher deitada no assoalho da casa, na rede, cama e até dentro de barco. Entre as cidades de Acará e Belém atendeu uma grávida no meio da viagem. Teve que improvisar tudo, até faca da embarcação para cortar o cordão umbilical. Usou a peixeira de fatiar charque, peixe, carne e frango. Derramou cachaça na lâmina e fez o corte. Tudo acabou bem para mãe e filho.
Mas nem sempre há um final feliz. Quando há complicações no parto, ou abortos naturais, o trabalho é mais cansativo para expulsar os restos de placenta que ficam na barriga da mãe. Para evitar infecção, a parteira usa óleo de pracaxi, copaíba e andiroba. Faz massagens, prepara chás e controla a temperatura. Em situações assim, ou quando a mãe sofre hemorragia após o nascimento da criança, a parteira acaba se mudando para a casa da paciente.
Utiliza o poder curativo das ervas “brasileirinha” e “corrente branca”. Controla a alimentação da mãe e veda a ingestão de comida reimosa, como peixe de pele, camarão, carne de porco, anta, veado, paca e cutia. Em toda a gravidez a parteira não recomenda o consumo de carne de caça. A exceção é apenas se o caçador for o marido da gestante.
Para produzir leite, algumas mulheres são aconselhadas a usar um saquinho de sal pendurado no pescoço, ou massagear os seios com água que evapora e se acumula na tampa da panela. As crianças são benzidas e massageadas com óleos e essências, para evitar quebranto, ou mau-olhado. As parteiras tradicionais são capazes de identificar o tempo de gestação e até a data aproximada do nascimento da criança. Maria José era tão reverenciada, porque previa até mesmo o sexo do bebê.
Quando Vanda completou sete anos, sua mãe mudou da colônia para a cidade e levou todos os filhos. O pai, Lázaro, continuou na roça. A menina estuda e divide o tempo entre a escola e a casa da parteira. Os laços afetivos aumentaram entre as duas. A garota mora próximo e ajuda a madrinha nos trabalhos de parto. O tempo avança e o envelhecimento diminuiu a visão da parteira. Gradativamente, Vanda começa a ocupar o lugar da sua “dindinha”.
O Estado reconhece o trabalho das parteiras e a adolescente se interessa em descobrir outros procedimentos que antecedem ao parto. Marília, freira portuguesa com experiência em missões humanitárias em Moçambique, divide o que sabe com Vanda. A professora de biologia faz a ponte de acesso aos médicos e enfermeiros da Santa Casa de Misericórdia.
Um treinamento ampliou os conhecimentos da jovem parteira. Ela ganhou um manual e um kit com tesoura, luvas, balança, fita métrica, linha esterilizada para cortar o cordão umbilical, álcool iodado e um aparelho para ouvir o coração da criança. A madrinha foi se afastando da improvisada “maternidade”, um puxadinho ao lado da casa.
Vanda começa a ganhar credibilidade na comunidade. Uma vai saindo de cena, a outra sobe no palco onde a criança chora e anuncia sua presença. A jovem parteira tem um pacto com o nascimento. Não importam as agruras e os sofrimentos do parto. A noite não conta. O que importam são as cores da aurora, todas as manhãs.
Maria José entra para a história. Vanda, agora, é quem ajuda o desabrochar de novas vidas. Vanda é a continuidade de Maria José. Perpetuidade do saber indígena, do conhecimento africano, da cultura europeia. Da valorização do parto natural. Da ciência da floresta. Da solidariedade, que ainda predomina nas comunidades tradicionais, onde a presença do poder público é mínima.
Felipe Alves de Macedo, o Filipinho, deixou a Terra. Foi ao encontro de seus companheiros de luta no Araguaia: Raimundo Ferreira Lima (Gringo), João Canuto, Expedito Ribeiro e tantos outros bravos camponeses que lutaram e tombaram na luta pelo direito de viver e produzir no campo. Dedicou seus 81 anos de vida ao cultivo da terra como animador de comunidade, na organização e resistência dos lavradores, em Conceição do Araguaia. Filipinho foi presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Conceição do Araguaia, dirigente da Central Única dos Trabalhadores (CUT-Pará) e membro do Partido dos Trabalhadores. Viveu parte de sua vida sob ameaça de pistoleiros a serviço do latifúndio. O ex-dirigente do STTR fez parte de uma lista de “marcados para morrer”. O repórter-fotográfico João Roberto Ripper, que integrou a agência F-4, fez um registro, em 1980, com seis pessoas ameaçadas: Maria da Guia, Josimar, Filipinho, Oneide Lima (viúva do Gringo), Luiz Lopes e João Pereira. O jornalista, em...
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